segunda-feira, 4 de abril de 2011

Pobreza envergonhada

Subia a rua a direito, numa passada ritmada e acelerada, na esperança de chegar a horas. Seria a primeira vez esta semana. Mas, a meio desta jornada, algo me reteve a atenção. De olhar perdido no chão uma senhora vasculhava o lixo na sarjeta. Parei e mantive-me a observar à distância, perante a indiferença de quem passava. Por mera curiosidade aproximei-me e percebi o desespero que transparecia no rosto da senhora. Ofereci a minha ajuda.
- Não. Obrigada. - respondeu, sem sequer retirar os olhos do chão.
E continuou a sua busca.
Preparava-me para virar costas e seguir caminho mas resolvi fazer uma última tentativa:
- De certeza que não precisa de ajuda?
Parou a busca, olhou e finalmente respondeu:
- Perdi 20 euros que trazia no bolso.
- Esqueça, só por milagre consegue recuperá-los.
- Eu sei, mas é a minha única alternativa. É tudo o que me resta para o fim de semana, segunda-feira já recebo o ordenado. 
Com um marido desempregado e dois filhos na escola vivem com 730 euros por mês. É pouco? Não, há quem viva com menos, com muito menos. É uma família típica portuguesa, que, depois de honrar com todos os compromissos que assumiu e pagar todas as contas que religiosamente lhe chegam à caixa do correio, fica com 180 euros mensais para alimentação, vestuário, transportes e o que mais lhe aparecer. Estamos a falar de uma família que poderia ser a nossa, igual a tantas outras, que não pede ajuda, que acha que vai resolver, que vai dar  a volta por cima mas que, enquanto nada muda, vive uma pobreza envergonhada.
Sentada no passeio, deixa cair as armas com que luta diariamente e chora. Chora porque o filho fez anos e não lhe pode comprar os ténis que ele queria e que precisa. Chora porque a filha talvez precise de óculos e não pode sequer levá-la ao oftalmologista para confirmar o diagnóstico. Chora porque a máquina de lavar roupa avariou e tem receio de mandar consertá-la e se assustar com a factura. -"É da maneira que gasto menos eletricidade."-conclui. Chora pelo cansaço, pela ginástica mental na gestão do orçamento familiar. Chora porque perdeu o dinheiro que lhe restava e não vai poder comprar pão e leite para o fim de semana. - "Vou mandá-los para casa da avó."-remata.
Todos sabemos que estas situações existem na nossa cidade, na nossa rua, na casa ao lado mas a confrontação com este desespero descrito na primeira pessoa fez-me acordar do marasmo e da sonolência entorpecida em que as notícias da televisão nos deixam, adormecendo sentimentos como a compaixão, a solidariedade, a partilha, e sobretudo, a consciência da dimensão real das tragédias. A quantidade de tragédias e pseudo-tragédias é tanta que se torna impossível filtrar e valorizar o que realmente importa. O mais fácil é ignorar ou registar sem assimilar.
É certo que o Estado tem descurado o seu papel social, mas nós, cidadãos em geral, estamos tão preocupados com os nossos problemas, as nossas rotinas, as nossas vidas que esquecemos de como pequenos gestos podem fazer alguma diferença na vida de quem precisa mais do que nós. Eu não sou do tempo da Maria Cachucha mas recordo-me de há 20 anos atrás os vizinhos serem equiparados à família, a quem se recorria para uma aflição, fosse para um quilo de arroz, para um pacote de leite, para umas horas de babysitting  ou para emprestar dinheiro numa urgência médica. Porque é que se perderam estes valores sociais, porque é que um vizinho passou a ser apenas um rosto familiar com quem periodicamente nos cruzamos no elevador? Este é o momento de refletir sobre o papel que desempenhamos na nossa comunidade, aldeia, vila ou cidade, olhar para o que nos rodeia com olhos de ver e intervir na medida das nossas possibilidades. A isto se chama viver em sociedade. 
Escusado será dizer que cheguei novamente atrasada.

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